Breves notas para Trovadores Elétricos
I
No papel,
embora pessoa, a ficha dupla da identidade varia. O temperamento do verso,
embora reconhecível de imediato, interessa menos como personalidade, do que
como estilo – ou poÉTICA. Descolar, do poema [do livro], o som fácil do civil
biografema – unidade mínima, e redutora, da força de execução do texto – não é
só mais rentável: é menos preguiçoso. No mais, seria um dispositivo desbotador;
melhor, um entrave na percepção da passagem do cacoete para a dicção. Daí,
qualquer comentário sobre o Anderson Pires da Silva, correr o risco de recair
em um trobar plan/um trobar plat, ou seja: trovar plano,
simples e chato. Começo por descumprir o ritual das razos.
II
Sondar o som
de Anderson. Não me alargo, muito. Há uma genealogia, óbvia, que circula e espectra
o livro que ora aparece – em tempo, mas já quase passando da hora [precisávamos
dele antes!]. Genealogia, sim, de trovadores já eletrificados: Maiakovski,
Dylan Thomas, Allen Ginsberg, Chacal – o último, ora pois, com sua Letra Elétrika [a fala mais cabralina de
Ricardo, penso]. O interesse pelo trovadoresco em plena era tecnológica se dá,
“precisamente, [na] tecnologia poética, [no] trabalho de estruturação e de
ajuste das peças do poema, em termos de artesanato, é evidente, mas que
assinalam um dos mais altos momentos da poesia no sentido da apropriação do
instrumento verbal e de sua adequação ao dizer poético”. Augusto de Campos dixit, vide o Verso, Reverso, Controverso.
Contemporaneamente,
cabido dizer, está na cena do texto poético a disposição do corpo, e da voz,
cumprindo o lugar privilegiado da execução do poema. Performance como atuação e
desempenho – do poeta e da escritura. A Coperifa, de Sérgio Vaz, entendeu tudo.
O CEP, 20000 anos antes, também. O ECO talvez se emende e entenda. Anderson
consegue, na maior parte do tempo, cumprir tal propósito – no corpo da voz, na
timbragem da escrita – em e com seu[s] Trovadores
Elétricos.
Agora passo
em análise, não muito detida, por um poema. Mostro o bastante. O resto é com
quem leia.
III
O poema é sistema de conhecimento
Verdade fingimento
Um verso, às vezes, um sorriso
Ilumina pelo avesso
Um poema também é fúria individualista
Já leu Artaud?
Uma rima é uma ideia
Ritmo e palavras perfeitas
A poesia pode ser um caminho nobre
E todos os caminhos levam à Glória
Um poema é composto para ser decomposto
É uma fórmula, uma solução, uma política.
Observe-se o poema. Na superfície, o texto comparece
montado na mais tradicional concepção do verso livre: lineação sem medida
definida, sem a brusca alternância – ou radicalidade – do enjambement,
cumprindo a parada da sentença no final. Mera aparência.
O leitor atento pode captar na ação microscópica da
análise, ou na contraparte ativa da oralização, que todo ele é coalhado pela
prevalência das modulações ternárias (seja a do anapesto ou do dactilo). Ao
atuar dinâmicas do corpo, na vocalização do poema, é possível deslumbrar
nuances e disfarces rítmicos não percebidos a olho nu. Por exemplo, as
componentes binárias que, passo a passo, fazem o andamento discursivo cambiar a
meio pé entre dança e ideia.
De modo geral vê-se a ocorrência, consequente, de um
número maior de versos compostos dentro de metros “aceitáveis”; três deles –
pasme tu, leitor – dodecassílabos, sendo dois perfeitíssimos alexandrinos, com
acento na 6ª e 12ª sílabas [poéticas, claro]. De todo o poema, somente dois
versos são mais “selvagens” na medida. Afinal, “[um] poema também é fúria
individualista” – linha quase impossível na escansão, dada a irritabilidade das
tônicas agrupadas na posição medial do verso – nervoso e crítico. Contudo, a
estrofe que justifica o jogo dos ritmos – entre dança e pensamento – aqui se
apresenta:
/ -
/ - /
- / -
Uma rima é uma ideia
1 3
5 7
/ -
- / -
- / -
Ritmo e palavras perfeitas
1
4 7
Perceba-se a ironia, medida, dos versos em redondilhas
maiores – sendo um deles montado num perfeito ritmo trocaico, e o segundo no
chamado dançante do dactilo – que conjugam o termo propositivo [rima = ideia],
ao termo de execução [ritmo e palavra], entre binário e ternário. Dentro da
perfeição montada no cavalo do metro, nota-se a causticidade da voluntária rima
falsa entre “ideia/perfeitas”; que se, na timbragem, podem
fazer duvidar o ouvido, são avançadas na estrofe seguinte entre as rimas
incompletas de “nobre/Glória”.
Seguem-se os versos, mantém-se o plano da ironia – ainda,
e sempre, assombrada na forma. O caráter condicional, e dubitativo, da linha:
“A poesia pode ser um caminho nobre”, em cujo termo da solenidade é garantido nas
camadas de assonâncias em [o] – que se proliferam por toda estrofe final; mais
a lentidão – ainda que no arrojado desarranjo – do dodecassílabo, cumprindo a
preparação para o alargamento cursivo da lineação no fecho do poema.
Se “[um] poema é composto para ser decomposto”, cumpre-se
aqui a proposta – minha e do próprio texto – que o verso final decompõe, nas
pausas de saída com cesura correta [quase castiça], a selvageria da meditação
na prática do poema, assim dito: “É uma fórmula, uma solução, uma política”.
Verso que combina, como fecho forte, toda uma dinâmica rítmica no entalhe da peça:
avançada em dactilos, mediada em um péon, equilibrado, novamente, no retorno do
dactilo. Todo o poema no limite entre música e concentração.
IV
Enquanto determinada prática de leitura, sobre os poemas
de Anderson Pires, é colocada no ramerrame do “rápido e rasteiro”, parto em
contracanto; visto não enxergar tanto dessa velocidade dita. De modo geral, o
que observo, são textos dados à meditação – sem nenhum sentido grave, velhusco.
Com efeito, são movimentos para o ethos – no sentido de caráter, de
formação, gerador ativo de força propositiva e política; e nada disso pode se
conformar a qualquer tipo de rasteirice.
Os poemas de
Anderson comparecem como gradações, instantes reflexos de estocadas com ponta
aguda, atravessando todo o livro com verves que fingem metalinguagem, mas
encarnam o drama – em seu sentido de ação – não da feitura do poema; mas como
dizer desse lugar indecidido da poesia, em fatura de cisão e crise, e que
precisa, sempre, ser decisivo.
O texto poético
faz-se da necessidade do pé na porta; melhor dito: em várias portas. Há,
de fato, um toque de maldito, de apache, no Trovadores Elétricos. Há malícia, sim. No entanto, mais há do
cenário de crise bem instalado que politiza – e põe boa guarda nessa tensão com
a pólis – o jogo do privado (lugar do
poeta) e do público (lugar da poesia).
Trabalhar na contramaré para pensar o aproveitamento,
quase sempre com brilho, dos temas/referências/língua encenados pelo poeta – na
constante briga entre a comunicação, não ocorrendo sem atrito, do texto poético
com o público – tem-se em Trovadores Elétricos um senso de colocação na
área, mas sem dribles de efeito, confeitados para mera provocação. Repito, com
o exemplo tomado, que Anderson, assim, faz a passagem do cacoete para a dicção.
Trovador, não do canto; mas da sentencial logopeia.
V
Após passar por
toda pólvora, por favor, compreenda: é um livro de amor.
14/IX/2012
André Capilé, capelão.