terça-feira, 9 de abril de 2013

A fortuna dos críticos - André Capilé


Breves notas para Trovadores Elétricos

I

No papel, embora pessoa, a ficha dupla da identidade varia. O temperamento do verso, embora reconhecível de imediato, interessa menos como personalidade, do que como estilo – ou poÉTICA. Descolar, do poema [do livro], o som fácil do civil biografema – unidade mínima, e redutora, da força de execução do texto – não é só mais rentável: é menos preguiçoso. No mais, seria um dispositivo desbotador; melhor, um entrave na percepção da passagem do cacoete para a dicção. Daí, qualquer comentário sobre o Anderson Pires da Silva, correr o risco de recair em um trobar plan/um trobar plat, ou seja: trovar plano, simples e chato. Começo por descumprir o ritual das razos.

II

Sondar o som de Anderson. Não me alargo, muito. Há uma genealogia, óbvia, que circula e espectra o livro que ora aparece – em tempo, mas já quase passando da hora [precisávamos dele antes!]. Genealogia, sim, de trovadores já eletrificados: Maiakovski, Dylan Thomas, Allen Ginsberg, Chacal – o último, ora pois, com sua Letra Elétrika [a fala mais cabralina de Ricardo, penso]. O interesse pelo trovadoresco em plena era tecnológica se dá, “precisamente, [na] tecnologia poética, [no] trabalho de estruturação e de ajuste das peças do poema, em termos de artesanato, é evidente, mas que assinalam um dos mais altos momentos da poesia no sentido da apropriação do instrumento verbal e de sua adequação ao dizer poético”. Augusto de Campos dixit, vide o Verso, Reverso, Controverso.
Contemporaneamente, cabido dizer, está na cena do texto poético a disposição do corpo, e da voz, cumprindo o lugar privilegiado da execução do poema. Performance como atuação e desempenho – do poeta e da escritura. A Coperifa, de Sérgio Vaz, entendeu tudo. O CEP, 20000 anos antes, também. O ECO talvez se emende e entenda. Anderson consegue, na maior parte do tempo, cumprir tal propósito – no corpo da voz, na timbragem da escrita – em e com seu[s] Trovadores Elétricos.
Agora passo em análise, não muito detida, por um poema. Mostro o bastante. O resto é com quem leia.

III

O poema é sistema de conhecimento
Verdade fingimento

Um verso, às vezes, um sorriso
Ilumina pelo avesso

Um poema também é fúria individualista
Já leu Artaud?

Uma rima é uma ideia
Ritmo e palavras perfeitas

A poesia pode ser um caminho nobre
E todos os caminhos levam à Glória

Um poema é composto para ser decomposto
É uma fórmula, uma solução, uma política.

Observe-se o poema. Na superfície, o texto comparece montado na mais tradicional concepção do verso livre: lineação sem medida definida, sem a brusca alternância – ou radicalidade – do enjambement, cumprindo a parada da sentença no final. Mera aparência.
O leitor atento pode captar na ação microscópica da análise, ou na contraparte ativa da oralização, que todo ele é coalhado pela prevalência das modulações ternárias (seja a do anapesto ou do dactilo). Ao atuar dinâmicas do corpo, na vocalização do poema, é possível deslumbrar nuances e disfarces rítmicos não percebidos a olho nu. Por exemplo, as componentes binárias que, passo a passo, fazem o andamento discursivo cambiar a meio pé entre dança e ideia.
De modo geral vê-se a ocorrência, consequente, de um número maior de versos compostos dentro de metros “aceitáveis”; três deles – pasme tu, leitor – dodecassílabos, sendo dois perfeitíssimos alexandrinos, com acento na 6ª e 12ª sílabas [poéticas, claro]. De todo o poema, somente dois versos são mais “selvagens” na medida. Afinal, “[um] poema também é fúria individualista” – linha quase impossível na escansão, dada a irritabilidade das tônicas agrupadas na posição medial do verso – nervoso e crítico. Contudo, a estrofe que justifica o jogo dos ritmos – entre dança e pensamento – aqui se apresenta:

  /  -    /    -   /    -    /  -
Uma rima é uma ideia
 1      3       5        7
    /    -    -   /   -     -    /  -        
Ritmo e palavras perfeitas
   1            4             7

Perceba-se a ironia, medida, dos versos em redondilhas maiores – sendo um deles montado num perfeito ritmo trocaico, e o segundo no chamado dançante do dactilo – que conjugam o termo propositivo [rima = ideia], ao termo de execução [ritmo e palavra], entre binário e ternário. Dentro da perfeição montada no cavalo do metro, nota-se a causticidade da voluntária rima falsa entre “ideia/perfeitas”; que se, na timbragem, podem fazer duvidar o ouvido, são avançadas na estrofe seguinte entre as rimas incompletas de “nobre/Glória”.
Seguem-se os versos, mantém-se o plano da ironia – ainda, e sempre, assombrada na forma. O caráter condicional, e dubitativo, da linha: “A poesia pode ser um caminho nobre”, em cujo termo da solenidade é garantido nas camadas de assonâncias em [o] – que se proliferam por toda estrofe final; mais a lentidão – ainda que no arrojado desarranjo – do dodecassílabo, cumprindo a preparação para o alargamento cursivo da lineação no fecho do poema.
Se “[um] poema é composto para ser decomposto”, cumpre-se aqui a proposta – minha e do próprio texto – que o verso final decompõe, nas pausas de saída com cesura correta [quase castiça], a selvageria da meditação na prática do poema, assim dito: “É uma fórmula, uma solução, uma política”. Verso que combina, como fecho forte, toda uma dinâmica rítmica no entalhe da peça: avançada em dactilos, mediada em um péon, equilibrado, novamente, no retorno do dactilo. Todo o poema no limite entre música e concentração.

IV

Enquanto determinada prática de leitura, sobre os poemas de Anderson Pires, é colocada no ramerrame do “rápido e rasteiro”, parto em contracanto; visto não enxergar tanto dessa velocidade dita. De modo geral, o que observo, são textos dados à meditação – sem nenhum sentido grave, velhusco. Com efeito, são movimentos para o ethos – no sentido de caráter, de formação, gerador ativo de força propositiva e política; e nada disso pode se conformar a qualquer tipo de rasteirice.
Os poemas de Anderson comparecem como gradações, instantes reflexos de estocadas com ponta aguda, atravessando todo o livro com verves que fingem metalinguagem, mas encarnam o drama – em seu sentido de ação – não da feitura do poema; mas como dizer desse lugar indecidido da poesia, em fatura de cisão e crise, e que precisa, sempre, ser decisivo.
O texto poético faz-se da necessidade do pé na porta; melhor dito: em várias portas. Há, de fato, um toque de maldito, de apache, no Trovadores Elétricos. Há malícia, sim. No entanto, mais há do cenário de crise bem instalado que politiza – e põe boa guarda nessa tensão com a pólis – o jogo do privado (lugar do poeta) e do público (lugar da poesia).
Trabalhar na contramaré para pensar o aproveitamento, quase sempre com brilho, dos temas/referências/língua encenados pelo poeta – na constante briga entre a comunicação, não ocorrendo sem atrito, do texto poético com o público – tem-se em Trovadores Elétricos um senso de colocação na área, mas sem dribles de efeito, confeitados para mera provocação. Repito, com o exemplo tomado, que Anderson, assim, faz a passagem do cacoete para a dicção. Trovador, não do canto; mas da sentencial logopeia.

V

Após passar por toda pólvora, por favor, compreenda: é um livro de amor.

14/IX/2012
André Capilé, capelão.

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